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O Zen e as Artes Marciais

Uma das características do caminho do guerreiro que se diferencia do caminho da cultura é a presença constante da morte. Os guerreiros apreciavam o Zen, entre outras razões, porque ele os ensinava a enfrentar a morte com serenidade, Musashi, mesmo profundamente interessado pelo Zen, rejeita esse argumento.
O fato notável na sociedade japonesa do século XVII, era que as pessoas de todas as posições sociais compreendiam a inevitabilidade da morte, sem ter absolutamente de relacioná-la com o dever ou com a consciência. Os camponeses comuns estavam tão próximos da morte como qualquer guerreiro; muito menos os guerreiros burocráticos, para os quais as artes marciais eram um passatempo.
A política do shogunato consistia em manter as pessoas inseguras do seu destino; por isso, não precisavam do Budismo para lembrá-las da efemeridade da vida.
Os agricultores, que constituíam quatro quintos da população na época, eram sobrecarregados com tributos elevados que constantemente se sentiam ameaçados de extrema debilidade. Também eram ameaçados de burei-uchi ("ser morto por insolência") sempre que estavam na presença dos samurais.
Assim, independentemente de serem guerreiros ou camponeses, não era a cultura tradicional do Budismo que fazia as pessoas lembrarem-se da morte, mas é a proximidade real da morte que provocava o interesse pelo Budismo, pessoas de todas as posições sociais dedicavam-se a praticar o zen a fim de conhecer a essência do seu próprio caminho.
Quando a era dos Estados em Guerra chegou ao fim por volta do ano de 1600, um movimento começou a reunir e a sistematizar as artes e ciências dispersas daquele tempo estranhamente brilhante, conquanto turbulento. Yagyü Munenori e Miyamoto Musashi foram guerreiros extraordinários que sobreviveram numa época de grandes convulsões na civilização japonesa.
Eles usaram nas suas obras um núcleo antigo de técnicas educativas e métodos de ensino a fim de representar seu papel na adaptação da cultura a uma nova era. Nessas condições, a necessidade do perigo para usar o caminho do guerreiro como meio de auto-aperfeiçoamento podia tornar-se facilmente uma ameaça à sociedade.
Um dos principais incentivos na prática do zen consiste em destronar o conhecimento intelectual de sua condição de acessório pessoal. Segundo The Flower Ornament Scripture, um dos textos preferidos dos mestres zen: "Assim como alguém que conta os tesouros de outrem sem ter meia moeda de seu, assim é aquele que é erudito mas não faz uso do que aprendeu.
Assim como alguém que profere todo tipo de belas palavras sem ter realmente virtude interior, assim são aqueles que não praticam". O Confucionismo já fora assimilado ao Zen da China quinhentos anos antes, enquanto o Xintoísmo e a arte poética japonesa (disciplinas já intimamente associadas, desde sua origem) foram bastante influenciados pelo Zen-budismo no Japão medieval.
Durante o século XVII, no tempo de Takuan, de Yagyu e Musashi, era costume entre os mestres zen falar como se o Budismo, o Confucionismo e o Xintoísmo fossem basicamente idênticos em espírito.
O estudioso do Zen e das artes zen, defrontava com o desafio de distinguir os níveis de praticantes: havia os adeptos completos, mestres do Zen e da arte; os especialistas, que conheciam suficientemente o Zen para dominar uma arte, ou que conheciam uma arte até o limiar do Zen; os diletantes, que procuravam imitar a aparência exterior dos especialistas para seu próprio divertimento; e os charlatões, que imitavam os especialistas para proveito próprio.
De acordo com o mestre zen Dogen, "estudar o budismo é estudar o eu. Estudar o eu é esquecer o eu. Esquecer o eu é ser iluminado por todas as coisas." Segundo esse contexto zen, a auto-analise significa não apenas investigar o eu real, mas também conhecer as tendências subjectivas dos falsos eus. Esquecer o eu significa atravessar as barreiras da auto-ilusão por um falso eu. Ser iluminado por todas as coisas é o aprender através das experiências de vida tal como ela é, sem a mitologia dos falsos eus, que impõem seus julgamentos e preconcepções acerca do significado.
Nas palavras do mestre zen Dogen, não significa que não há a consciência do eu, mas apenas que essa consciência não está contida em um determinado eu. Ainda que separado da consciência da morte obrigatória aos guerreiros profissionais, a recordação da impermanência e da inevitabilidade da morte pessoal tem sido usada por budistas de todas as posições sociais como um dos métodos mais acessíveis e eficientes para libertar a mente do apego compulsivo às coisas.
Esse é um dos exercícios básicos da prática budista elementar, encontrado no amplo espectro das escolas e escrituras budistas. O Budismo possibilita aos praticantes apreciar mais plenamente a vida, ser mais livres e mais eficientes no que quer que façam. E ensina-os também a encarar com serenidade e destemor a morte e a doença.
Em termos budistas, a irrealidade última das coisas mundanas não quer dizer que elas sejam banais ou desprezíveis, mas sim que são maleáveis, o que significa que são manipuláveis. A percepção do vazio, portanto, não significa retirar-se do mundo, mas sim a capacidade de mudar o potencial de evolução. Shosan segue descrevendo o tipo de mudança e progresso ao qual o Zen-budismo aspira quando cura as "doenças mentais" que mantêm a humanidade mergulhada em atitudes animalescas.
Aqui a relação íntima entre a libertação individual e a libertação colectiva torna-se evidente. O objectivo primordial do Zen é recuperar a experiência da mente original através de si mesmo.

A partir desse ponto de vista é possível que se dê um fim à ilusão do apego às superficialidades. Devido à persistente tendência da mentalidade superficial a agarrar-se a aspectos exteriores, a disciplina necessária para libertar a energia mental dos obstáculos não pode ser realmente imposta à pessoa a partir de fora, mas precisa vir de dentro.
Na ausência de força interior correspondente, a disciplina exterior em si torna-se um apego, um acessório do ego. A espontaneidade genuína, proveniente da consciência aberta e centrada (em vez do reflexo condicionado), é valorizada não apenas pelos guerreiros zen, mas por todos os que procuram aplicar a consciência zen às situações reais da vida. A mente zen transcende as fixações, mesmo as mais abstractas. Inclui-se aí uma fixação comum entre os praticantes do zen.
Se você fixa a sua mente nas acções de um adversário, sua mente é tomada pelas acções do adversário.
Se você fixa a mente na espada de um adversário,
sua mente é tomada pela espada do adversário.
Se você fixa a mente na ideia de aniquilar um adversário, sua mente é tomada pela ideia de aniquilar o adversário.
Se você fixa a mente na sua própria espada, sua mente é tomada pela sua própria espada.
Se você fixa a mente na determinação de não ser morto, sua mente é tomada pela determinação de não ser morto.
Se você fixa a mente na posição das pessoas; sua mente é tomada pela posição das pessoas.
A questão é: não existe realmente um ponto onde fixar a mente.
A recuperação da mente básica é de importância fundamental no Zen. O equilíbrio natural da mente básica também era procurado pelos guerreiros como um centro de equilíbrio, do qual a acção espontânea podia emergir sem a inibição causada pelo acanhamento.